11 de janeiro de 2010

"Por Que Viajamos"

[excerto de ensaio]

Viajamos, inicialmente, para nos perdermos; e viajamos, de seguida, para nos encontrarmos. Viajamos para abrirmos os corações e os olhos, e para aprendermos mais sobre o mundo do que os nossos jornais acomodarão. Viajamos para trazermos o pouco que pudermos, na nossa ignorância e conhecimento, àquelas partes do globo cujas riquezas estão dispersas de forma diferente. E viajamos, em essência, para voltarmos a ser jovens loucos — para abrandarmos o tempo e sermos absorvidos, e apaixonarmo-nos uma vez mais. A beleza de todo este processo terá sido melhor descrita, mesmo antes de as pessoas começarem a voar com frequência, por George Santayana no seu ensaio lapidar, “A Filosofia da Viagem”. Nós "precisamos às vezes," escreveu o filósofo de Harvard, "de escapar para solidões abertas, para a ausência de propósito, para as férias morais de corrermos algum puro perigo, de modo a aguçarmos o gume da vida, a provarmos a dificuldade, e a sermos obrigados a trabalhar desesperadamente, durante um momento, no que quer que seja." (…)

E todavia, para mim, a primeira grande alegria de viajar é simplesmente o luxo de deixar em casa todas as minhas crenças e certezas, e ver tudo o que pensava que sabia sob uma nova luz, e de um ângulo distorcido. Nesse aspecto, até um restaurante Kentucky Fried Chicken (em Beijing) ou a projecção revivalista de uma cópia riscada de "Orquídeas Selvagens" (nos Champs Elysées) pode ser tanto novidade como revelação: Na China, afinal, as pessoas pagarão o salário de uma semana para comer com o Coronel Sanders, e em Paris, Mickey Rourke é considerado o maior actor desde Jerry Lewis.

Se um restaurante mongol nos parece exótico numa pequena cidade do Illinois, daí decorre que um McDonald's pareceria igualmente exótico em Ulan Bator — ou pelo menos igualmente longe de tudo quanto seja esperado. Embora hoje em dia seja moda fazer-se uma distinção entre o "turista" e o "viajante", a verdadeira distinção talvez se encontre entre aqueles que deixam as suas suposições em casa e aqueles que o não fazem: Entre aqueles que o não fazem, um turista é apenas alguém que se queixa, "Aqui nada é como em casa," enquanto um viajante é alguém que resmunga, "Aqui é tudo como no Cairo — ou em Cuzco, ou em Katmandu". É tudo mais ou menos a mesma coisa. (…)

De modo que viajar, para muitos de nós, é uma demanda não apenas do desconhecido, mas daquilo que não se pode conhecer. Eu, pelo menos, viajo em busca de um olhar inocente que me possa fazer regressar a um estado mais inocente. Tenho tendência a acreditar mais quando estou no estrangeiro do que quando estou em casa (o que, embora seja também traiçoeiro, pode pelo menos ajudar-me a ampliar a minha visão), e tenho tendência a excitar-me mais facilmente no estrangeiro, e mesmo a ser mais amável. E, dado que ninguém com quem travo conhecimento me consegue "situar" — ninguém consegue encaixar-me no meu currículo —, posso refazer-me para melhor, bem como, evidentemente, para pior (se a viagem é notoriamente um berço para identidades falsas, pode também, no seu melhor, ser um crucíbulo para identidades mais verdadeiras.) Deste modo, viajar pode ser uma espécie de monasticismo em movimento: Na estrada, é frequente vivermos com mais simplicidade (mesmo quando ficamos num hotel de luxo), sem mais possessões do que as que conseguimos transportar, enquanto nos rendemos ao acaso.

Era a isto que Camus se referia quando disse que "o que dá valor à viagem é o medo" — por outras palavras, a perturbação (ou emancipação) da circunstância, e de todos os hábitos por trás dos quais nos escondemos. É é por isso que tantos de nós viajam não em busca de respostas, mas de perguntas melhores. Eu, tal como muita gente, tenho tendência a questionar os lugares que visito, e saboreio melhor aqueles que me respondem com as questões mais inquisitivas sobre mim: No Paraguai, por exemplo, onde um carro em cada dois é roubado, e dois terços dos artigos à venda são de contrabando, devo repensar todas as minhas suposições californianas. E na Tailândia, onde muitas jovens prescindem dos corpos de modo a proteger as famílias — para se tornarem melhores budistas —, devo questionar os meus julgamentos demasiado prontos. "O livro ideal de viagens," disse certa vez Christopher Isherwood, “deveria ser talvez um pouco como uma história policial na qual estamos à procura de algo". E trata-se da melhor espécie de algo, acrescentaria eu, se for um algo que jamais conseguiremos encontrar. (…)

— Pico Iyer, in "Why We Travel", publicado em World Hum

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